Em 2015, um grupo de super-humanos escapa de uma base do governo para salvar o mundo, e acaba descobrindo uma série de segredos sombrios. Essas são suas histórias.

Horóscopo

Sete e dez da manhã, horário de Greenwich. A mortalha de silêncio e quietude do quarto escuro foi quebrada pelo estilhaçante toque do telefone. Alisia acordou e não quis abrir os olhos. Estava confortável daquela forma e de qualquer maneira, pôde ver toda a extensão do quarto assim que acordou. Estendeu o braço para alcançar o aparelho e desejou como nunca que seus poderes fossem telecinéticos. Ajustando o fone no rosto da melhor forma possível para o momento, balbuciou algo e a voz da recepcionista soou amigável como devem ser as pessoas que nos acordam antes das nove.

“Bom dia, senhorita Bryant, são sete horas e onze minutos, a senhorita pediu para ser acordada, está certo?” pronunciou aquelas palavras como se já tivesse acordado mil pessoas com aquela frase. Alisia respondeu um “muito obrigado” como se já tivesse sido acordada por mil recepcionistas com aquela frase.

Levantou-se. Agora o fósforo já se assentava no cérebro e ela lembrou que estava no Hilton Plaza, em Londres. Levou as mãos à cabeça. Era verdade, tinha compromissos para aquela manhã, e o primeiro deles era o mais importante.

Levantou-se e caminhou até o chuveiro. No banho, pensou no que estava fazendo em Londres e em tudo que acontecera na última semana. Ainda não conseguia deixar de pensar em Richard com mágoa, apesar de já ter os pensamentos melhor assentados. Sabia que havia exagerado, que não devia e nem podia julgá-lo por seus atos. A maioria das pessoas que tinham super-habilidades se preocupava mais em dominar do que em ajudar o mundo. Não, uma caçada por vingança pessoal motivada por meia dúzia de brinquedos quebrados não era certa, e nenhuma boa ação do mundo o eximiria da culpa. Mas e quanto a Robert Porter? Ele morreu dilacerado em uma cama ensopada com seu próprio sangue, e o fato de que ele era um assassino estuprador também não a eximia do remorso. Enxaguou os cabelos e retomou a linearidade do pensamento. Não estava partindo por conta de Richard. Isso também não significava que estava disposta a trabalhar novamente com ele. Não podia mais confiar nele.

Oito e dez da manhã, hora de Greenwich. Uma paisagem caribenha de céu azulado e praias da mais cândida areia emoldurava uma cena envolvendo Claude Nistelroy e três jovens Third Steppers. Súbito como um relâmpago, o estrondoso e catastrófico rugir do despertador irrompeu através do quarto, estraçalhando céus, areias e mulheres com o impiedoso soar da manhã. Ainda um tanto desnorteado com o retorno, Claude estendeu a mão até o despertador, desejando que seus poderes geneativos incluíssem rajadas laser.

Olhou para o relógio. Devia estar em sua sala a dez minutos atrás. Muito pior, Klaus devia estar no ônibus da escola a quinze minutos atrás. Detestava entrar em velocidade ampliada logo que acordava, mas a situação urgia. Antes que o colchão notasse a ausência de seu corpo e pudesse retomar o formato original, Claude já havia passado pelo quarto de Klaus e notado que o menino não estava lá. Correu até o computador e solicitou a visão das câmeras da escola. Privilégios de quem havia desenhado o sistema de vigilância e segurança da escola do próprio filho. Lá estava ele, sentado na última carteira do fundo da classe. Devia ter acordado sozinho e apanhado o ônibus sem acordá-lo. Era independente com sete anos de idade, o que fazia Claude ponderar sobre o que aconteceria se ele desenvolvesse poderes. Não tinha tempo para pensar naquilo às oito e onze da manhã.

Em um clarão de luz seguido de um estampido surdo de som, Claude cuidou de tomar banho, fazer a barba e se trajar com um elegante terno marrom de corte italiano discreto. Oito e doze, e o elevador que o conduzia através de trezentos metros de rocha que separavam o Poliedro – base de operações de Lightning e lar secreto dos Nistelroy – do prédio da Nistelroy Security Technologies de Londres já o entregava no sexto e último andar da construção.

Parou por um segundo diante da porta. Abriu o celular e, enquanto sensores espalhados pelas paredes faziam dezenas de leituras por seu corpo em diferentes comprimentos de onda, o milionário acompanhava os resultados na tela do portátil. Era o protótipo NISS-6942, já em fase final de testes para ser aplicado ao Consulado do México, seu mais novo cliente. Um suave ruído, seguido do acender de luzes, anunciou a liberação de acesso ao andar. Uma voz feminina sintética e agradável desejou-lhe bom dia.

Olhou por sobre sua mesa enquanto ligava o notebook. Uma garrafa de café, certamente servida por Rosemary às oito em ponto. E o jornal, ah, como começar o dia sem o jornal?

Sentou-se esparramado em sua enorme poltrona de couro e, enquanto colocava café em uma xícara, começou a passar rapidamente os olhos pela primeira página. Atentados no Japão, resgate de vítimas na Costa Oeste dos EUA, eleições na França. Nada de mais. Tomou um largo gole de café e, enquanto apertava o botão do aparelho telefônico que chamava Rosemary, virou a página do jornal. Achou graça ao ler o horóscopo do dia. Áries, de 20 de Março a 20 de Abril. O dia é propício para mudanças, seja favorável a convites inusitados. Cor da sorte: Azul. Número da sorte: 4.

Uma voz feminina, mas agora bastante natural e muito menos agradável, soou do viva-voz. “Para alguém com suas habilidades, senhor Nistelroy, o senhor compromete seriissimamente a reputação da pontualidade inglesa...” a voz de Rosemary era casual e cínica, demonstrando que mais infalível do que a pontualidade era o sarcasmo britânico. Divagou por mais um instante, como conseqüência do sono deixado ainda a pouco na cama. Rosemary era sem dúvida a mais imprescindível dos mais de mil empregados que compunham a Nistelroy Security Technologies. Mais até do que o próprio Claude. Sabia das senhas, dos compromissos, dos clientes secretos, do passado criminoso de seu patrão e até mesmo de sua vida oculta como Lightning. Era a pessoa em que o até mesmo o ladrão confiava. Quarenta anos, nenhum filho, nenhum parente vivo e um pós-doutorado em Administração de Empresas. Lembrou-se dos heróis da ficção e concluiu que, sem dúvida, todo super-herói deveria mesmo ter um Alfred em quem possa confiar.

“É o sangue francês, Rosie, meu fuso horário está em Paris, cherí” sorriu, fechando o jornal e voltando-se para o computador. “Tenho algum compromisso urgente para o qual já esteja perdendo hora nesse momento?” perguntou, um tanto temeroso da resposta, que nunca era muito boa naqueles contextos.

“Só a senhorita Alisia Bryant, da ONU, que o está aguardando aqui embaixo desde as oito. Devo manda-la subir?”

Alisia. Claude engoliu seco como que em um reflexo. Havia conversado no telefone com Nicholas na manhã anterior e ficara sabendo do conflito entre ela e Crusade. Ela havia deixado a equipe de Nova York, mas Claude não fazia a mínima idéia de o que ela poderia querer ali.

“É claro que pode, traga também chá verde, ela gosta bastante. Ahn, pode por favor deter todas as ligações para a minha sala enquanto ela estiver aqui?” Rosemary respondeu afirmativamente e Claude desligou o telefone. No tempo que decorreu até que ela entrasse na sala, conseguiu ponderar quatro possibilidades para o que a jovem diplomata poderia querer. Fechou os olhos e torceu para que não fosse a terceira possibilidade.

“A senhorita pode subir, o senhor Nistelroy a está aguardando em sua sala ...”

Alisia levantou-se e ajustou a barra da calça de tom pastel que delineava suas formas femininas perfeitas. Não usava roupas civis todos os dias, normalmente preferia moldar roupas de luz sólida e vestir-se de ilusões, mas naquela manhã sentiu a necessidade de algo mais real. Agradeceu e dirigiu-se ao elevador. Conhecia bem o caminho, e podia ver nitidamente cada uma das dúzias de câmeras e sensores espalhados e minuciosamente escondidos pelos corredores e portas. Chegou ao último andar e observou ainda de dentro do elevador que não havia mais ninguém ali. Tentou olhar dentro da sala de Claude. Finas camadas de espelhos sobrepostas por entre o concreto e a alvenaria bloqueavam completamente sua visão. Muito inteligente, pensou, um lugar onde nem mesmo os amigos podem observa-lo. Chegou à porta e abriu, sem bater.

“Onde está a diplomacia canadense, meu Deus?” brincou o inglês, acerca da entrada sem bater na porta. Ele levantou-se e deu três passos até ela, observando cuidadosamente suas vestes e, inevitavelmente, perguntando-se se o que ela vestia eram mesmo roupas ou apenas luz. Era difícil, de qualquer forma, não se distrair da conversa com uma mulher tão deslumbrantemente linda.

“Creio que esteja no Canadá. Já tem um bom tempo que não nos vemos, senhor Nistelroy, como está Klaus?” ela tinha aquele suave tom que misturava uma finíssima ironia com a maciez de palavras amigas. Claude a abraçou e deu-lhe um beijo no rosto. Tentou deduzir algo das roupas pelo toque, mas não pôde ser conclusivo.

Sentaram-se. A porta foi aberta novamente e Rosemary entrou na sala carregando uma bandeja com chá verde. Claude e Alisia agradeceram e, tão logo a secretária os deixou, voltaram-se um para o outro.

“Você deve estar se perguntando porque eu vim para cá, certo?”

“Imagino que não tenha sido para provar a mundialmente famosa culinária inglesa. O que aconteceu em Nova York?” Claude cruzava as pernas e colocava mais café em sua xícara. A pergunta eliminou a primeira hipótese.

“Mundialmente infame, você quer dizer. De fato, não. O que aconteceu em Nova York você já sabe, é evidente. O porquê, isso realmente não faz mais diferença alguma. Eu preciso de sua ajuda, Claude.”

Segunda hipótese descartada. Torceu para que não fosse mesmo a terceira. Deu um gole no café e, quando a jovem acendeu um cigarro, não conseguiu deixar de pedir um. Fez sinal para que ela prosseguisse.

“O que sabe dos MaxCops?” perguntou, incisivamente. Ainda não descartava totalmente a terceira hipótese, mas fez com que Claude ponderasse acerca de onde ela queria chegar.

“Projeto da MaxCorp que conseguiu legitimidade legal para patrulhar as ruas de Londres. A opinião pública a respeito deles é dividida mas os favoráveis têm crescido em número ... Nada que não esteja nos jornais, porque?”

Alisia abriu uma pasta e apanhou alguns papéis, estendendo-os para o milionário. Ele folheou em um micronésimo de segundo e, em seguida, retornou um olhar assustado para a bela mulher.

“MaxCops pelo mundo? Ele quer formar uma nova ISC?”

“Ele já tem algo próximo disso. O primeiro passo agora é conseguir instalar a MaxCorp como mantenedora da ordem pública na América do Norte. Lá terão uma vitrine mundial que certamente fará outros governantes a se questionarem sobre se não valeria a pena tercerizar o problema da criminalidade. Entende o que isso acarretaria, Claude?”

“Eles teriam controle sobre a inocência ou culpa dos civis que interessassem a Maxwell. Poderiam criar unidades governamentalmente amparadas para impedir a ação de super-humanos que não trabalhassem para o maldito ... Quando isso vai acontecer?”

“Em dois meses haverá uma assembléia governamental na ONU que decidirá a aprovação ou não de uma unidade experimental em Nova York e em Montreal. Eu estou fazendo de tudo para ser nomeada para discursar nessa reunião, mas isso não vai bastar, e é por isso que preciso de você.”

Claude engoliu seco novamente. Não queria mais pensar nas quatro hipóteses, então olhou para Alisia e fez a pergunta crucial. “E no que consiste essa ajuda?”

“Eu estou tirando férias da vida como Sunshine durante esses meses. Primeiro porque tenho trabalhado demais e o stress começou a comprometer a clareza de algumas escolhas que tenho feito. Segundo, porque não tenho mais o menor desejo de voltar a trabalhar com Richard Teabing nos próximos vinte ou trinta anos. Finalmente, porque nesses meses pretendo permanecer em Londres e investigar até o último beco dessa cidade atrás de sujeiras da MaxCorp que possam ser utilizadas para impedir que essa loucura vá adiante.” Alisia interrompeu-se quando Claude levantou, com olhar cinicamente ingênuo, a mão. “Sim?”

“Eu não perguntei a razão de ter se afastado, mon amour, eu perguntei no que consiste a judá que me envolve ...”

Alisia sorriu e respirou um pouco mais fundo. Ele era irritante e provocativo, e era exatamente o que o fazia um adversário patético porém divertido para retórica. Decidiu cortar diretamente ao ponto.

“Eu quero usar o Poliedro nesses meses, e quero que você vá para Nova York trabalhar com eles.”

Silêncio. Não era a terceira hipótese. Nem a quarta. Perguntou-se sobre se Richard teria pensado nessa quinta hipótese ou mesmo em outras dezenas que não lhe vieram à mente.

“E o que eu vou fazer em Nova York, pelo amor de Deus?!” exclamou, estupefato pela inesperabilidade do pedido.

“Ajuda-los. Sem mim eles estão com uma baixa estratégica de suporte em combate. Você tem o cinismo necessário para lidar com Crusade e é o único que conhece a equipe bem o bastante para me substituir. Além disso, e agora o mais importante, se Maxwell souber que o Lightning está atuando na América do Norte, vai diminuir suas ações por lá em vista do processo iminente da MaxCops e descuidar-se em Londres, onde eu estarei observando cuidadosa e silenciosamente.”

Claude odiava aquilo, mas Alisia sabia unir elementos retóricos aparentemente soltos em um discurso que, para quem partilhava o momento da performance, convenciam como o diabo.

“E Klaus? Ele está em época de provas na escola, não posso simplesmente tira-lo de lá agora!” não sabia muito bem o quanto daquilo era pelo menino e o quanto era por si próprio. “Além disso, onde vou morar em Nova York? Eu não tenho nada contra Richard, mas não quero morar em algum lugar onde não controlo os sistemas de segurança!”

“Fique tranqüilo, querido. Eu pensei em tudo, olha só: vocês vão morar no meu apartamento de cobertura em NY, pertinho do prédio da ONU e de uma excelente escola. E quanto a Klaus, ele pode fazer as provas lá, deixe toda essa parte de burocracia comigo, certo?”

Claude respirou fundo e, consciente de que não possuía a eloqüência necessária para dissuadir a diplomata de cabelos e olhos dourados, olhou vencido para o jornal dobrado sobre a mesa e só conseguiu pensar no horóscopo do dia.

Áries, de 20 de Março a 20 de Abril. O dia é propício para mudanças, seja favorável a convites inusitados. Cor da sorte: Azul. Número da sorte: 4.