Em 2015, um grupo de super-humanos escapa de uma base do governo para salvar o mundo, e acaba descobrindo uma série de segredos sombrios. Essas são suas histórias.

Disguise

Quando conheci Grenko Mardov, tive de imediato a certeza de que não se tratava de um ser humano. Isso foi a 4 anos e, na ocasião, lembro-me de tê-lo julgado um animal selvagem e irracional. Hoje sei que estava parcialmente correto em minhas conclusões precipitadas. De fato, os anos mostraram-me que Grenko Mardov não era, de fato, humano. Mas eu me enganava, e hoje sei disso, quanto a sua real natureza. Hoje, quatro anos após abandonar minha antiga e sepultada vida e me tornar Yulav Dardenko, braço direito do mesmo Mardov, sei que tal indivíduo – talvez o mais extraordinário que eu já tenha conhecido – não é um animal selvagem. Não. Grenko Mardov é a realização somática mais genuína que se possa chamar de um monstro. Um legítimo monstro retirado das antigas literaturas vitorianas.

Não tenho a menor idéia de como ou porque ele se tornou o que é. Não sei de histórias de infâncias duras na URSS, nem de qualquer tipo de abuso físico ou psicológico ao longo de sua adolescência, se é que esse homem já foi mesmo algum dia uma criança.

O aspecto e fama de Mardov não advêm apenas de sua dureza como líder. É bem verdade que ele executa pessoalmente todo capanga que não cumpre seus deveres, como também é verdade que já o vi matar a sangue frio homens, mulheres, crianças, idosos e até gestantes com igual e indiscernível frieza. Mas nada disso era real diferencial no meio em que trabalha.

Grenko Mardov é um sujeito sem qualquer nível de escolaridade que aprendeu absolutamente tudo o que sabe por empirismo e teimosia. Essa teimosia rendeu-lhe os dois atributos que o tornaram respeitado, temido e procurado internacionalmente.

Primeiro, Grenko é um gênio nas artes às quais se propôs. Atira, luta e comanda melhor do que qualquer um das dezenas de Special Ops que já matou. Aprendeu os idiomas de seus inimigos e espalhou seu poder pela Ásia Menor. Controla tudo aquilo que compreende dentro de sua facção e deixa tudo o restante que não compreende em minhas mãos. Tenho que confessar, afinal: nenhum dinheiro no mundo pagaria o risco que corro diariamente. Eu, como os outros, se sigo Mardov é porque o admiro.

Segundo, porque Grenko é implacável. Em combate e em debate, absolutamente implacável. Intransigente, impassível, ele transparece enquanto negocia e enquanto luta que não vai ceder nada em condição alguma. Sei que isso parece exagero, mas como já disse: eu o vi liderar por quatro anos, e em todo esse tempo, ele só fez impressionar – para bem e, mais freqüentemente, para mal – a mim e a todos que o conheceram. Se nesses quatro anos eu disser que o vi errar uma única vez, minto.

E foi por isso que, quando aquele homem com fenótipo oeste-europeu e sotaque francês bateu na porta da frente do quartel-general e disse que tinha uma adesão, tive a certeza de que não era um Interpol disfarçado. Porque Grenko pessoalmente abriu a porta para o homem, apontando-lhe um rifle e olhando-o no fundo dos olhos.

Olhos de gatuno, foi o que Grenko me disse, quando perguntei-lhe como sabia que não era uma armadilha. Olhos de gatuno, segundo ele, podem ser encontrados em bandidos, terroristas, assassinos, ladrões, mercenários e até mesmo em alguns políticos. Nunca em policiais ou agentes da lei. Uma forma de olhar para as pessoas e para as coisas que as pessoas portam e para as coisas ao redor das pessoas. Mais do que tudo, acredito que Mardov se impressionou com a audácia do sujeito.

O misterioso homem se apresentou como Jean Jacques Perrault, certamente um nome falso. Ex-assassino da máfia francesa, ex-mercenário no Taliban. Dizia ser capaz de derrubar doze homens armados e de liderar qualquer grupo de assalto. Grenko gargalhou e lembro-me do sujeito limpando a saliva que voava da boca de Grenko enquanto ria. Lembro-me de ver Grenko saindo da sala e ordenando aos mais de vinte que lá estavam junto comigo para que matassem o homem e jogassem seu corpo aos cães.

Mas, com muito mais nitidez, lembro-me de ver aquele homem desarmar, fraturar e nocautear mais de vinte homens e, de tudo, nada me é mais claro na memória do que o momento em que ele quebrou meu braço esquerdo em três partes distintas. Chutou nossas costelas quando caímos no chão, descarregou um fuzil nas paredes da sala como quem desafia qualquer um a se opor, e gritou por Mardov.

Mardov atendeu-o prontamente, caindo de um salto pelas costas do homem, e eu pude ver sua faca enterrando fundo e rasgando generosa a carne do intruso, lavando com seu sangue um capanga caído. Acreditei que aquilo encerrava tudo e que então Grenko nos daria um longo e violento sermão sobre como somos fracos.

Deixei de acreditar naquilo quando vi o homem se levantando com a mão sobre a barriga e notei que o ferimento havia simplesmente desaparecido. O homem misterioso que se chamava Perrault era um deles, um dos inumanos, que a mídia chama Geneativos.

Ele se levantou e, no minuto que seguiu, trocou socos e golpes com Mardov. Quando pareciam cansados, Grenko acenou e disse que já bastava. Parecia, ao menos para mim, impossível acreditar naquilo, mas o homem ganhou a confiança de Grenko Mardov exatos quarenta e dois minutos após entrar pela porta de sua casa.

“Ei, Yulav, o chefe ainda não saiu?”

Meus pensamentos se interrompem com a voz de Boris. Ele, como eu e como todos, não está se sentindo nada confortável com isso. Grenko e o homem já a duas horas trancados sozinhos na sala de reunião. Já escutamos um tiro, uma janela quebrando, e uma gargalhada. De resto, mais nada. Não é o primeiro negociante livre que chega aqui, mas é o primeiro que negocia com Mardov sem estar rodeado por armas.

“Teremos que esperar, Boris. Eu confio em Mardov, mas também estou curioso para saber o que esse francês quer”.

Frio.

Era inverno em Moscou, as pessoas evitavam sair de casa, preferindo se manter aquecidas em sua toca bebendo muita vodca. Mikhail Arshavin voltava do trabalho as 17 horas como sempre fazia. Seu motorista parou em frente da sua mansão e abriu a porta para ele. A neve caía grossa e pesada, nublando a visão e entorpecendo a pele, mesmo sob o pesado casaco, Mikhail tremia.
Ele entrou pela enorme porta dupla de carvalho com passos rápidos, buscando o calor de seu lar, enquanto seu motorista fechava as portas e voltava, no frio, para guardar o carro. Dentro do Hall, portas fechadas, ele depositou seu pesado casaco no guardador como sempre fazia e se encaminhou para a sala em busca de um gole de conhaque. Mikhail era um homem de hábitos regulares e se irritava quando algo estava fora do planejamento, tanto no trabalho quanto na vida pessoal, todos os seus movimentos eram planejados com antecedência e meticulosidade. Seus filhos eram criados de uma forma diferente do convencional, brincadeiras e carinho tinham hora marcada e contada, assim como todas as atividades das crianças.
As 17 e 30 ele estava relaxado em sua poltrona terminando de ler seu jornal, enquanto fumava um cigarro tomando conhaque. Sua mulher e filhas só desceriam para a sala as 18 horas quando ceiariam, estavam envolvidas em suas atividades e não poderiam interromper Mikhail em sua leitura. Ás 17 e 40 seria servido o café pela empregada para abrir o apetite e a disposição de mikhail para a conversa com a família. Mikhail gostava de saber os pormenores da existência de suas filhas e do que acontecia em sua casa, de certa forma, procedia como no trabalho, com meticulosidade marcial. Ele trabalhava na contra espionagem Russa, departamento A34 para assuntos externos, cuidava de eliminar possíveis agentes duplos e espiões infiltrados, nos seus 45 anos tinha um currículo militar admirável, de lealdade ao país.
Ele trabalhava na central de Moscou cumprindo um suposto horário comercial de trabalho, o prédio um edifício da Petrolífica Nacional, ramificação da contabilidade, somente uma fachada para a agência Russa. Alguns dias Mikhail fazia serões que varavam a madrugada, mas na maioria dos casos, como este, cumpria seu horário comercial normal. Estranhamente ele se portara mau-humorado no jantar, não perguntara nada para as filhas, permanecera quieto. Sua mulher tentou puxar assunto, mas ignorada, foi-se deitar. Ele permaneceu na sala, deveria estar lendo, mas os acontecimentos do trabalho o incomodavam. Uma discussão que mais parecera um interrogatório guiado por Nicolai, o chefe da espionagem, seu colega de trabalho odioso. Nicolai era uma máquina e suas engrenagens eram movidas por sangue. Nicolai adorava interrogatórios do velho modo da KGB, excruciantes. " A verdade só vem com a dor, a dor da morte" dizia ele sombrio, e depois ria para si mesmo, como se contasse uma piada antiga. Mikhail odiava-o, contudo Nicolai era demasiado eficiente para ser eliminado, tão eficiente quanto Mikhail, o que só aumentava seu ódio. O mais estranho foi a discussão que os dois tiveram, Mikhail se pegava pensando nisso desde que chegara. Ele inquiria Arshavin acerca de negociações com os árabes que Mikhail havia aprisionado, acusando-o de corroborar com os invasores e de ser um agente dos árabes. Era uma tolice, Arshavin nunca trabalharia para os árabes, ele ajudava os Estados Unidos fazia anos! Seria uma tolice comprometer-se com árabes.
Entretanto, Nicolai agira de modo estranho para o seu próprio comportamento, discutindo abertamente, ele que fora sempre reservado, nunca faria uma acusação dessas em aberto. Mikhail tomou um gole de conhaque, estava cansado e a neve caía ainda pesada lá fora. Dentro do quarto a lareira esquentava seus pés enquanto seu pensamento divagava na discussão com Nicolai. Estaria ele em perigo? Por precaução mandara um dos oficiais eliminar Nicolai, seu nome é Andrei Rasputin, um frio assassino da contra espionagem, encarregado do serviço de limpezada agência. Rasputin era rápido e sigiloso, cumpria seu papel sem fazer perguntas e não se questionava sobre quem mataria, era o melhor agente da organização e tinha vários privilégios. Nicolai dizia que ele era um dos geneativos, um dos modificados, mas Mikhail nunca tinha visto nada de especial em Andrei, nada a não ser sua habilidade em matança e sua aparência estranha, com olhos repuxados cinzas e cabelos brancos. Não era de se estranhar, sua mãe era uma mestiça afinal, japonesa e russa. Mas várias informações acerca do seu passado era consideradas secretas, até mesmo para Mikhail. Depois de um trago ele pousou o jornal. eram 20 e 45. Nicolai haveria de estar morto.
Ele bebeu o resto do conhaque num brinde de comemoração, sorriu, seu humor melhorara só com o pensamento de que Nicolai não mais existia. Se virou para a janela e quase caiu sentado novamente. A sua frente estava o mestiço, alto, branco, e frio. Ele olhava diretamente nos olhos de Mikhail, o que era aterrador conhecendo a fama do assassino que atendia por Mushin. "Você terminou o serviço?" perguntou Mikhail com a voz trêmula, as chamas da lareira ardiam fortemente. Andrei caminhou para a lateral da sala, ignorando a pergunta e ligou o rádio, um cd de Tchaikovsky tocou alegremente e preencheu a sala. Mikhail nervoso perguntou novamente.
Andrei se virou para Mikhail e respondeu" Ainda não, mas... Nicolai mandou lembranças." Eram 20 e 51 quando Andrei voltava para o frio.

Innuendo

Em 1947, na pequena cidade de Roswell, nos Estados Unidos da América, uma experiência envolvendo alguns dos maiores cientistas do mundo e um artefato de origens e propriedades desconhecidas desencadeou uma sucessão de eventos que, nas décadas seguintes, daria início a uma Guerra Fria de supersoldados e arquivilões que mudaria por completo e para sempre o destino do pequeno planeta Terra e de alguns de seus patéticos habitantes. Não para melhor, na maioria dos casos, e não de quaisquer de seus patéticos habitantes. Na verdade, apenas alguns poucos – predestinados, eleitos ou simplesmente condenados – de qualquer sorte de poder – humano ou superior – que o colocasse em condição de ver ligeiramente através das paredes de vidro negro. A presença de super-humanos nas principais agências governamentais de Inteligência do mundo cuidou , nos quase 70 anos que hoje nos separam da infeliz e audaz experiência de Roswell, para que tais eleitos tivessem seríssimas dificuldades em agir furtivamente na Terra de 2017. É claro que medidas como aquelas eram absolutamente necessárias, visto que mesmo assim não era possível conter por completo os movimentos desses predestinados. Alguns deles se infiltravam em organizações para-governamentais de iniciativas ocultas para buscar proteção. Outros, tentavam unir-se para somar possibilidades. Existiam, no entanto, alguns condenados que haviam entrado no jogo por acidente, e agora precisavam manter-se vivos. Eram em geral pessoas com poder demasiadamente insignificante para interessar a qualquer grupo de poder, e ao mesmo tempo perigosos e traiçoeiros demais para conseguirem aliados. A essas pessoas, os mais desgraçados de toda a Tragédia Roswelliana, restava cavar buracos até os mais profundos confins da Terra e, de lá, tentar mover suas peças em um tabuleiro de xadrez infinito onde cada peça – cada reles peão – é um jogador.

Grenko Mardov era um desses homens. No ano de 2017, seu grupo de extermínio conseguiu recrutar um jovem com habilidades sobre-humanas. Ninguém soube detalhes de como isso ocorreu, mas nos meses seguintes, o grupo de extermínio de Grenko Mardov decuplicou em contingente e influência. Havia entrado, em Agosto de 2017, na lista dos 50 mais procurados da Interpol, e sua lista de crimes superava até mesmo a de países em que era procurado. Sem poderes que o mantivessem a salvo de olhos e garras hostis, Mardov buscou segurança isolando-se no lugar mais obscuro e remoto que conseguiu encontrar na Terra.

Duchambe, 02h11min AM, GMT+5, hora local.
Tente imaginar becos escuros, de poucos metros de largura entre paredes de pedra irregular e madeira rota e úmida, chão de uma terra vermelha seca a ponto de agredir as narinas de alguém pouco habituado ao árido. Ao longo dessas ruas, homens, mulheres, velhos, crianças e animais partilham em total igualdade da glória do Grande Allah e da desconsolante miséria da menor e mais pobre nação da Ásia Menor. Dos seus pouco mais de sete milhões de habitantes, mais da metade vive em situação de insustentável e deplorável pobreza. Seus fiéis súditos de Allah, os Tadjiques, ainda se recuperavam de uma guerra civil que a menos de duas décadas devastara toda a pequena nação do Tadjiquistão. Seus habitantes, árabes, persas e russos ainda remanescentes, resquícios da Guerra Fria, viviam um governo de desmandos e corrupção que deixava poucas portas abertas ao progresso e muitas a interesses de homens como Grenko Mardov.

E foi em um daqueles becos, escuros e imundos, de odor transitando entre suor, excrementos e ópio, iluminado por uma ou outra rara lamparina a óleo e pelas estrelas de um céu limpo como a Terra jamais seria, que Claude Monet Nistelroy, trajando vestes locais pobres e intencionalmente surradas, olhou ao redor e perguntou-se como diabos encontraria aquele homem naquele inferno.

É bem verdade que qualquer homem, honesto ou bandido, cristão ou muçulmano, veria em tal paradigma um problema insolúvel. Claude não conhecia sequer o centro de Duchambe, a capital do Tadjiquistão, quanto menos sua periferia. As ruas eram incubadoras de assassinos, prostitutas, mercadores de ópio, vigaristas em geral e toda sorte de ladrões. Pelo menos com a última casta Claude estava bem habituado. Os adeptos da vida fácil de Duchambe não podiam, afinal, ser tão diferentes dos de qualquer outro lugar. Além disso, Claude não era qualquer homem, não era um bandido e tampouco um homem honesto e nunca fora cristão ou muçulmano.

Não falar sequer uma palavra do idioma local, uma variação moderna do persa chamada Tadji, também não era exatamente um problema para quem sabia se comunicar com o corpo. Um olhar ameaçador, uma mão que rouba Somonis do bolso de um Tadjique para estendê-los a outro, alguns eventuais e inevitáveis golpes, sempre tomando cuidado com velocidades excessivas, e a capacidade de pronunciar em voz baixa o nome de Grenko Mardov, foram suficientes para que antes do nascer do Sol o londrino com nome francês e sobrenome holandês chegasse ao pequeno sobrado de pedra com grades altas e grossas de ferro arcaicamente enferrujado.

Sabia que estava agindo precipitadamente, sabia que entrar em sigilo no Tadjiquistão, perguntar pelo nome de Mardov nos becos do submundo, roubar, espancar e ameaçar seus homens e bater à porta da frente do covil de um homem que foge de algumas das mais poderosas instituições do mundo, não era exatamente o que se chamaria de um plano prudente e bem arquitetado. Mas Claude sabia improvisar, sabia pensar rápido, e tinha consigo que somente isso poderia mantê-lo no controle da situação toda.

Com movimentos felinos e inauditos, ele se esgueirou escondeu, saltou por sobre grades e nocauteou dois guardas do portão sem emitir um único ruído. Pegou suas armas, os amarrou ao portão e, com a maior naturalidade que seu amadeirado semblante permitiu, acendeu um charuto, caminhando até a grande porta igualmente amadeirada da frente, batendo nela com três pesados golpes. Uma pequena janela de deslizar correu lateralmente, revelando um par de olhos azuis e um cano metálico que parecia de uma .45 norte-americana. O homem grunhiu algo interrogativo em idioma Tadji, que Claude incompreendeu por completo. Deu uma longa tragada no charuto. A fumaça esvaiu, revelando aos olhos azuis um Claude de cabelos grenhos e ensebados, sujo, malcheiroso e que não fazia barba a mais de uma semana. Tirou o charuto da boca e disse aos olhos e ao cano, no mais puro e legítimo inglês que conhecia.

“Diga ao senhor Mardov que ele tem uma adesão”