Em 2015, um grupo de super-humanos escapa de uma base do governo para salvar o mundo, e acaba descobrindo uma série de segredos sombrios. Essas são suas histórias.

Olhos Nublados — Parte I

A garota deu alguns passos tímidos para atravessar a rua. Não havia trânsito algum, mas a visibilidade era tão ruim que qualquer outra pessoa teria se arriscado a molhar a ponta do nariz para olhar para os lados. A chuva não parecia incomodá-la. Sua única proteção era um casaco surrado, semi-impermeável, que, muito tempo atrás, deveria ter sido azul.
Seus olhos negros acompanhavam o vazio, e estavam quase tão nublados quanto o céu. Um cachorro passou correndo, e quase a derrubou, mas não a fez diminuir sua marcha. Ela apertou o casaco ainda mais, segurando-o com as mãos pálidas. Seus cabelos estavam molhados, negros e sem brilho. Eram uma imagem da noite, e as gotas de chuva faziam-lhe estrelas de vida curta.

Parou em frente a uma loja de conveniência. Enfiou os dedos num telefone público imundo, e tirou de lá uma meia dúzia de moedas. Ela não contou o dinheiro, nem ficou surpresa com tamanha fortuna perdida. Entrou na loja, mas ficou parada alguns instantes na porta, por que tinham uma máquina que fazia ventar um ar quente reconfortante. Esperou que lhe chamassem duas vezes antes de passar pelas prateleiras. Apanhou dois pacotes de alguma coisa, e soltou as moedas de forma tímida no caixa.
O responsável, um senhor de mais de cinqüenta anos, gordo, assistindo um programa de caminhões-monstro no canal de esportes, tirou os pés do caixa e contou as moedas duas vezes, com um olhar desconfiado. Jogou-as na caixa registradora, e balbuciou algumas palavras sem sentido algum.
A garota ficou parada alguns instantes, e abriu um dos pacotes ali mesmo. Aqueles alimentos baratos, com sabor de plástico seco, que nos mantém andando por mais algumas horas. Quando o senhor da loja começou a ficar incomodado com a presença da jovem, pegou um bastão de baseball e começou a praguejar, sem sair de sua posição de conforto.
Ela jogou o segundo saco para trás, e ele descreveu um arco perfeito, caindo poucos passos da entrada da loja. Um homem entrou correndo, com um capacete de moto tapando o rosto. Esticou um revolver pequeno, e gritou.

— É um assalto, tiozinho! Vai passando toda a grana, e quem sabe eu não furo sua testa! E ocê minazinha, vai tomar um belo tiro se...

Escorregou no saco que ela havia jogado no chão, caindo em cima de uma prateleira de enlatados. Disparou por acidente, e a bala passou raspando nos cabelos da moça, fazendo-os balançar, e terminou por atingir uma caixa de metal presa na parede, desligando a eletricidade do local. O velho levantou correndo armado do bastão, e tentou golpear o motoqueiro, apesar da escuridão.
No segundo golpe, alguma coisa se arrastou pelo chão, atingindo os sapatos da menina. Ela se abaixou e pegou o pequeno objeto, que fazia barulho como um sino abafado - chaves. Debruçou-se no balcão, e apanhou alguma coisa pequena. Andou calmamente enquanto ouvia as pancadas da madeira no capacete. Deveria estar trincado há essa hora.

Saiu da loja e entrou num beco escuro. Havia uma moto molhada convenientemente estacionada. Uma sacola de couro estava presa no banco, mas ela não precisou espiar para saber seu conteúdo. Sentou-se e deu ignição. Nunca havia dirigido uma moto americana antes, elas eram maiores, mais imponentes. Estava acostumada com as pequenas Scooter que podia comprar com seu antigo salário. Dirigiu por talvez 20 minutos. Deixou a sacola em frente a um orfanato, com um bilhete molhado e borrado que havia escrito semanas antes.

Empurrou a moto de uma ponte. Já não chovia muito, mas o vento frio havia feito que suas roupas praticamente congelassem sobre sua pele delicada. Ela entrou num Shopping, no meio da madrugada, e ficou parada de frente para algumas vitrines. Não havia ninguém mais no lugar fazia horas. Seus passos eram lentos, mas as câmeras pareciam se virar para o lado oposto, conforme chegava muito perto. Entrou num banheiro. Por sorte, o zelador havia se esquecido de trancar a porta.
Se aqueceu por quase trinta minutos, utilizando as maquinas de ar quente de secar as mãos. Tentou secar as roupas e o cabelo, mas eles pareciam resistir bravamente. Num momento exato, saiu do banheiro e foi até um telefone público do lado da porta. Discou alguns números. Esperou. Uma voz rouca atendeu, daquelas que resistem bravamente ao sono, por peso de alguma responsabilidade.

— Nicholas... Existe... Vá agora para a Ferguson Gate. Existe algo... Importante... Debaixo dela.

Desligou, e saiu andando. As câmeras pareciam evitá-la, como que por medo. Andou até o estacionamento do Shopping, e passou pelo segurança dormente. Roubou-lhe um gole de café quente.

Estava numa avenida enorme, com prédios por todos os lados. Suas mãos tremiam de frio. Tirou de dentro do casaco o pequeno objeto que afanara no balcão da loja de conveniência. Um celular velho e com pouca bateria. Apertou uns números com o indicador tremulo, enquanto atravessava uma das margens do rio de asfalto. Um homem com voz simpática atendeu, dizendo que não reconhecia o número. Falou algo sobre ainda não ter o dinheiro.

— Por favor... Pare o caro... Eu preciso de...

Um carro esporte virou bruscamente uma das esquinas da avenida. Seu motorista tinha um celular em mãos. Ele freiou com força, tocando de leve as pernas da moça com os pára-choques. Ela caiu. Na verdade, parecia ter sucumbido ao próprio peso do corpo. O homem saiu correndo do carro. Era levemente loiro, com cabelos longos e lisos. Usava um blazer cinza por cima de uma camisa branca, e tinha uma barba milimetricamente deixada por fazer, tal qual um galã de cinema.

— Moça, moça!?! Fala comigo! Moça!

Assustado, o rapaz segurou-a entre os braços. Colocou-a no banco de passageiros de seu carro. Pensou consigo mesmo por que fazia aquilo. Estava sozinho, ninguém saberia que ele atropelou (mesmo que não tivesse atropelado) a menina. Sentiu um pouco de arrependimento quando pensou naquele casado frio e molhado sujando seu banco de couro. Duas semanas! Duas semanas na América, e já havia lhe acontecido tudo.

Acelerou, olhando de vez em quando pare a menina. Era terrivelmente pálida, e seus cabelos eram de um negro mórbido, de uma beleza dos filmes de Noir. Não podia ver seus olhos, mas tentou adivinhar se eram castanhos ou azuis. Percebeu que ela tinha um pedaço de papel em mãos. Tão logo olhou, o papel caiu. Girou por causa do ar quente do carro, e caiu em seu colo. Ele desviou o olhar, e viu escrito, com tinta borrada. "Zed, eu sou alérgica à aspirina. Por favor, não pare no hospital."

Zed olhou, assustado. Respirou fundo, e notou que havia um gigantesco hospital no cruzamento da avenida. Amassou o papel e praguejou com um sotaque pesado. Virou o carro, e foi direto para o hotel.

3 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

to achando que essa garota tem super poderes...

Calliban disse...

Voce eh uma pessoa muito perceptiva =P