Em 2015, um grupo de super-humanos escapa de uma base do governo para salvar o mundo, e acaba descobrindo uma série de segredos sombrios. Essas são suas histórias.

Bourbon

Enquanto segurada já não tão firmemente pela singela e quase trêmula mão, a garrafa derramava insensível uma fina cascata de bebida dentro do copo de bordas manchadas com batom rosa-claro. Sentada no chão da sacada do apartamento em NY, costas apoiadas na quina de parede, tendo como companhia uma delgada fumaça que brotava da ponta do cigarro sobre o cinzeiro ao seu lado. A cabeça, tombada para o lado como se pesasse mais que a própria paisagem, olhava para uma direção despropositada. Não precisava olhar para as coisas, na verdade sentia como se tudo estivesse o tempo todo olhando para ela. Podia ver claramente quando caminhava pelas ruas: todos a observavam. Odiava aquilo, talvez por isso apreciasse tanto estar invisível. Levou o copo novamente à boca e bebeu mais um largo gole do líquido, sentiu o álcool atravessar seu peito e em seguida amortecer sua cabeça. A garrafa já passava da metade e ela ainda não atingira o estado que buscava. Um estado de paz, de esquecimento, de isenção. Não gostava tanto assim de ficar embriagada, mas nos últimos tempos aquilo havia se tornado necessário com cada vez mais freqüência. Ouviu o celular tocando dentro do quarto. Moveu seu campo de visão para o visor, apenas para descobrir que era do escritório. A ONU não parava, era uma megainstituição global que não podia parar por um segundo sequer.

Mas ela não. Ela não era uma instituição, era apenas uma garota. Conteve um riso amargo e torturado ao pensar naquilo. Sequer era um ser humano, ao menos não no sentido biológico da palavra. E se um macaco capaz de aprender, sentir, se relacionar e compreender as coisas, continuava sendo um macaco, o que a definiria como humana senão o fator biológico? Lembrava-se das palavras de Pierce, dois anos atrás, quando descobrira sua real natureza. Um projeto militar intergovernamental para criar armas de guerra super-humanas. Super-humana. Sequer conseguia se sentir humana, sequer conseguia sentir qualquer coisa inteira dentro de si, tudo era fragmentado como sua própria história. A começar pela infância. Quinze anos de escuridão. Seus pais haviam morrido em um acidente, era o que seus tios lhe contavam. Ela sofria de uma doença raríssima que a impedia do contato com a luz solar, era o que seus tios lhe diziam. Eles a amavam muito e sempre a amariam, era o que lhe diziam. Mentiras. Absolutamente todas mentiras.

A começar por seus pais, que eram por sua vez também armas governamentais desenvolvidas em laboratório e forçadas à reprodução. Não eram seus pais, eram matrizes genéticas, sequer eles eram humanos, então como estar mais distante que isso daquele mundo? Sua doença era outra enorme mentira, a maior de todas. Não podia sentir a luz solar porque isso ativaria seus poderes, e isso a colocaria em situação de ser efetivamente a arma que a projetaram para ser. Quinze anos. A janela de seu quarto era vedada com fitas adesivas e plásticos pretos. As crianças diziam que ela era um vampiro, um monstro, e por muito tempo ela acreditou nisso. De certa forma, ainda acreditava. Mas a pior mentira de todas não era aquela, e sim a de que seus tios a amavam. Não conseguiu impedir duas lágrimas gêmeas de rolarem paralelas por seu rosto enquanto se lembrava.

Se a amasse mesmo, ela pensou, sua tia jamais teria ido embora. Sem explicações, sem despedidas, sem sequer um bilhete que dissesse o porque. Simplesmente partiu, para nunca mais voltar, deixando para trás uma menina de quinze anos e um homem de 50 que não suportou a dor do abandono e se entregou aos comprimidos. Primeiro os antidepressivos, que o mantinham na cama o dia todo, deixando uma casa inteira para a menina que não podia viver de dia. Depois vieram os barbitúricos, e por último os seratogênicos, que o colocavam em um estado de euforia descontrolada. Foi naquele estado que ele a encontrou, deitada sobre o sofá, cansada e abatida de outro dia igualmente vazio. Foi nesse estado que ele decidiu que ela não era mais uma criança, era uma mulher, crescida e cheia de formas atraentes.

O copo caiu no chão, liberto dos dedos que agora se apertavam contra a palma das mãos. Soluçou, e o soluço deu espaço a um choro incontido. Tremia por dentro e por fora, lembrando-se do momento em que sentiu o cheiro ocre do suor nos braços de um velho possuído pela dor e pelas drogas, determinado por sua vez a possuí-la de alguma forma. Lembrou das mãos, ásperas e insensíveis apertando seu corpo. Lembrou-se de ter gritado e do pesado impacto do braço sobre seu rosto, calando o desespero em pálidos e apavorados gemidos de agonia. De todos os momentos de sua vida, nenhum teria sido tão perfeito para que seus poderes despertassem como aquele. Mas eles não despertaram, permaneceram como ela, calados e impotentes. No dia seguinte, a polícia o levaria para a Penitenciária Hicker, onde ele passaria os 5 anos seguintes de sua miserável vida, até ser morto por outro presidiário. Nunca se interessou em saber o que acontecera. Passou as mãos pelo rosto, enxugando as lágrimas. Tragou longamente o cigarro e espalhou a fumaça pela atmosfera a seu redor. Olhando para os cacos de vidro do copo espalhados pelo chão em meio ao bourbon, teve a inevitável associação com sua própria vida. Cacos. Cacos de uma infância nas sombras, cacos de uma adolescência sem pais, por mais que Douglas Moench tenha sido ótimo a adotando, cacos de uma vida sem sentido em que lutava sem saber o porque, por uma humanidade à qual ela sequer pertencia. Apanhou a garrafa e, sem cerimônias, bebeu um generoso gole direto no gargalo. Podia ter moldado um copo de luz, mas sentia-se em um estado de fim-de-carreira muito mais apropriado a gargalos do que a copos. Perguntou-se, finalmente, porque continuava.

Porque era esse o sentido de sua vida. Riu novamente, dessa vez muito mais amargurada. Que espécie de vida era aquela? Acordava e ia para a ONU, onde passava seis horas trabalhando com os meandros legais envolvendo crianças estrangeiras trabalhando em condições desumanas nos EUA. Todos os meses conseguia devolver dúzias delas a seus países, mas para quê? Para serem exploradas em outro lugar, para serem substituídas por outras que chegavam todos os dias pelos portos ocultas em fétidas caixas de madeira embolorada. Para morrerem, adoentadas antes dos nove anos, assassinadas antes dos doze, de overdose antes dos quinze, de fome um pouco por dia. Por mais que lutasse, não conseguia mudar o mundo. Quantos criminosos já detivera? Lann, Contágio, o Carniçal, cada um derrotado trazia quatro novos em seu rastro. Pensou em Nicholas. Ele nunca acreditara nessa conversa de herói. Talvez tivesse razão. Talvez não valesse mesmo a pena. Talvez não houvesse sentido naquilo tudo. Mais de uma vez pensara em simplesmente mudar de lado. Em usar seus poderes para pura e simples vantagem própria, e que se dane o resto do mundo. Que se danem as crianças escravizadas, as cidades ameaçadas de destruição, que se dane o mundo todo. Se ninguém se preocupava com ela, porque ela precisava se preocupar com um mundo que nunca fora justo?

Sentiu a cabeça rodando. Muito álcool. Finalmente começava a atingir o estado que queria. Mal conseguia se lembrar de onde estava, mal conseguia se lembrar de quem era. Eram aqueles minutos de total e completo torpor alcoólico que ela buscava. Minutos em que não era Alísia e nem Sunshine, em que não precisava lidar com a solidão de cada dia em seu apartamento, quando o trabalho da ONU já estava feito e quando não havia criminoso a ser caçado pela Extreme. Richard devia estar com Tessa, Nicholas com Christine, Gunther provavelmente visitava Sonique. Mas Alísia, sozinha na sacada de seu apartamento, estava completamente desacompanhada naquele momento. Desacompanhada de pessoas, desacompanhada de sentimentos, desacompanhada de esperanças. Sabia que no dia seguinte iria acordar com a cabeça girando ainda mais e que alguma coisa irracional a faria retomar tudo, a luta pelas crianças, pelo mundo, pela lei. Sabia que aquilo era muito mais movido pelo contexto do que por seu próprio ideal. Mas não queria se preocupar com ideais naquele momento.

Ali, jogada no chão sem ninguém que pudesse vê-la naquele estado deplorável, ela sorriu uma última vez antes de apagar, porque não conseguia mais saber quem era, e aquilo a tornava, ainda que por segundos, livre.

3 comentários:

Guilhotina Voadora disse...

Muito bom, o cal deve estar fulo porque eu comentei os seus dois textos e os dele ainda não...

Unknown disse...

To achando esse conto muito depressivo... achei que esse conto iria acabar com ela cortando os pulsos numa banheira... e sobre ela não ter ninguem, isso é mentira... o gunther adora ela(os dois tem um ao outro)...

Mavericko disse...

Boa capa, muito bom o conto.

E seguimos com a campanha "vai moonglight".