Em 2015, um grupo de super-humanos escapa de uma base do governo para salvar o mundo, e acaba descobrindo uma série de segredos sombrios. Essas são suas histórias.

Luzes de Mercúrio

Enquanto as finas pontas dos saltos altos golpeavam alternada e calmamente a calçada, minúsculas partículas do pavimento eram espalhadas pelo impacto, misturando-se à poeira e sujeira das ruas do Soho. Dentro das lojas, interruptores eram ligados e desligados, gerando microscópicas faíscas multiformes. Acima das nuvens, uma enorme tela negra dispunha sobre si dúzias de desenhos pontiformes de luminosidades variadas, cujo brilho já era tão obscurecido pela poluição que mal podia ser visto. Acima das casas, dúzias de arranha-céus construíam com suas janelas acesas uma disléxica e multidimensional paisagem noturna. Acima das cabeças, postes luminosos jorravam fótons esparsos e multidirecionais em todas as direções. Alisia podia ver tudo aquilo, simultaneamente, dentro de cada casa, em cada lado dos prédios, cada uma das constelações. Podia ver os elétrons correndo pela fiação metálica dentro dos conduítes encapados. Podia ver a lâmpada se aquecendo e os filamentos de mercúrio começando a brilhar. Para quem podia ver de perto, nada era mais bonito que aquilo. Nem o pôr-do-Sol no Norte, nem cristal líquido. A sensação de cor de Alisia era muito diferente. Ela não via as coisas como as pessoas comuns. Era como um novo sentido, muito diferente da visão, muito mais amplo, muito mais profundo. Era muito mais próximo da audição e do tato do que da visão em si. A luz, em todas as suas extensões de onda, refletia e se misturava e Alisia podia captar tudo aquilo simultaneamente o tempo todo, como uma sinfonia luminosa constante.

355, Walt Baker St. Quinto andar. Parou de caminhar e virou a cabeça na direção da loja de conveniências do outro lado da rua. Quinto andar, ele estava no apartamento 52, sentado na privada. Atravessou a rua e adentrou a loja. Queria comprar cigarros, decidiu que não interromperia o homem em uma hora daquelas. Comprou um maço de Dunhill, uma pastilha de cereja e uma revista sobre Super-Heróis na América, que notou ao lado do caixa. Na capa, o Crusade cravava sua espada no chão para impedir que um metrô colidisse em Nova York. Era a única na Extreme que se preocupava em saber sobre a opinião pública. No geral era muito boa. Enquanto pagava a compra, leu as páginas internas. Um cara dava entrevista contando como o Crusade salvou o dia e inspirou ele próprio a salvar uma senhora em perigo dentro do metrô. Acendeu um cigarro saindo da loja, e colocou uma pastilha na boca. Sentiu-se estranha. Não sabia o que dizer da reportagem. Richard era um playboy excêntrico com síndromes de megalomania, mas havia conseguido alcançar o preceito máximo do herói, ele havia conseguido inspirar o heroísmo do próximo. Alisia não conseguia achar aquilo ruim, pelo contrário, mas sentia algo estranho, como se não acreditasse totalmente que fosse mesmo possível mudar o mundo pelo poder do exemplo.

Guardou a revista na bolsa E terminou o cigarro. No 52, ele também já havia terminado. Subiu as escadas do prédio, passando incólume e despercebida pelo porteiro. Dentro do circuito interno de câmeras, as lentes captavam uma imagem projetada de homens passando pela portaria. Decidiu subir as escadas, não estava disposta a chamar a atenção de ninguém naquela noite. Cinco lances de degraus flutuando a dois palmos do chão, e em um minuto Alisia já caminhava novamente sobre os finos saltos altos. Parou diante da porta. 4h13am. Os vizinhos certamente dormiam, e era melhor que fosse assim. Aproximou o olhar dentro da fechadura e, moldando um pequeno objeto de luz sólida, abriu a porta. Ele estava deitado na cama do quarto, acabara de se cobrir. Alisia fechou a porta e voltou a flutuar centímetros acima do chão. Moveu-se até a cozinha e abriu a geladeira, pegando uma lata de cerveja do congelador. Deixou a bolsa sobre a mesa de jantar e deslocou-se calmamente até a porta do quarto. Repetiu o truque da primeira porta e adentrou o aposento. Deitado na cama, um homem de aproximadamente 30 anos com aspecto de pouca higiene virou-se olhando assustado.Uma fina camada de luz invisível sólida formou-se ao redor de todas as paredes do quarto, criando uma imperceptível barreira acústica. O homem levantou-se rapidamente, pegando um revólver que Alisia notara sob seu travesseiro enquanto comprava os cigarros. Quatro disparos, ele sequer perguntou quem era ou o que fazia ali. Sua mão tremia segurando a arma e, em seguida, deixando-a cair apavorado enquanto assistia às balas amassadas no ar caindo no chão. Alisia acendeu outro cigarro e tirou um papel de dentro do bolso, desdobrando-o.

"Eu realmente não estou com pressa nenhuma, mas se estivesse no seu lugar ia querer que isso acabasse o quanto antes, então me diga: Você é Robert Porter, número de seguridade social 54876387/NY?"

Ele relutou um pouco, e então respondeu afirmativamente. Era a certeza de que precisava. Aquele homem, Robert Porter, 31 anos, duas passagens por suspeita de homicídio, era o responsável por violentar e matar 12 meninas de 11 a 14 anos entre New Jersey, Rhode Island e New York, desaparecidas entre 2 anos e um mês atrás. Era muito bom no que fazia, nunca deixava rastros, nunca ficava muito tempo na cidade, nunca usava cartões de crédito. Alisia demorou um mês inteiro para localizá-lo. Havia sido chamada pelo NYPD para auxiliar no caso e conseguira descobrir o paradeiro do monstro. No último assassinato, o único em que Alisia presenciou a cena do crime, ele deixou para trás uma única digital, na parede do corredor da casa abandonada. Alisia respirou fundo, lembrou-se da visão do corpo da menina de 14 anos morta após ser estuprada. Deu um longo trago no cigarro e tentou esquecer-se de que ela própria já havia passado por aquilo aos 14 anos. Não precisava de mais ódio daquele homem. Já tinha em si mais do que o ssuficiente.

***

4h40am. Os vizinhos continuavam dormindo. Amarrado sem suas roupas, Robert Porter era suspenso pelas mãos por correntes luminosas que pendiam do teto. De seu corpo, inúmeros filetes de sangue vertiam de incontáveis cortes sobre a pele, formando uma enorme mancha vermelha que já começava a coagular no carpete. Com o único olho que ainda lhe restava, Porter continuava olhando, aterrorizado, a mulher loira de aproximadamente 25 anos e formas delicadas que acendia mais um cigarro enquanto apanhava outra pastilha. A expressão no rosto dela não havia mudado em absolutamente nada na última hora e meia em que ela o havia torturado. Sua pele havia sido queimada por fótons, seu olho esquerdo e órgãos genitais esfacelados por lâminas laser. Suas unhas arrancadas dos dedos jaziam ao chão misturadas ao sangue. Nenhum ruído, nenhum som havia deixado aquele cômodo do apartamento, apesar dos urros bestiais que o monstro emitia cada vez que Alisia desferia outro golpe. Mas ela não se alterava. Apenas olhava em sua direção e, entre um suplício e outro, perguntava-lhe sobre uma das doze meninas. Perguntava sobre a sensação de possuí-las, de sentir seus corpos parando de respirar aos poucos. Robert Porter ainda se propôs ao despeito de responder a primeira das perguntas. Não pareceu muito cooperativo a partir da segunda, no entanto. Já estava tarde. Observou novamente o homem pendurado a sua frente. Pensou em Crusade. Ele não faria aquilo, ele teria entregue o criminoso à justiça.

Mas ela não era Crusade. Ela não via sentido naquilo. Ele seria julgado mentalmente insano e mandado para tratamento em uma clínica estadual. Passaria o resto de seus dias sendo sustentado pela população, pelos pais das meninas mortas. Jamais pagaria pela dor que causou, pelo mal que trouxe ao mundo. Não, Alisia não podia fazer aquilo, não podia deixá-lo escapar. Ele não era um homem, não tinha senso algum de moralidade, era um monstro, muito pior do que um animal. Ela apenas fez o que era preciso.

Deixou o apartamento, gravando outra cena de homens agora saindo da portaria na câmera. A polícia não encontraria pista alguma sobre os homens que mataram Robert Porter, e o caso seria arquivado em duas semanas. Ainda na calçada em frente ao prédio, pôde observar dentro do quarto o momento em que o coração de Porter parou de bater. Acendeu outro cigarro e caminhou pelas calçadas. Enquanto a sinfonia luminosa se mantinha nas ruas do Soho, Alisia olhava para a capa da revista em sua bolsa. Nela, o Crusade encravava sua espada no chão para impedir a colisão de um metrô em New York. Um cara dava entrevista contando que o ato o inspirou a salvar uma senhora em perigo dentro do metrô. Na noite seguinte, todos os estupradores de NY iam ler nos jornais o que aconteceu a Robert Porter. Caminhando sozinha pelas calçadas do Soho, Alisia concluiu que, de certa forma, ainda que por meios inumanos – palavra que para ela tinha outra conotação – estava inspirando, através do exemplo, uma sensação inversa à de Crusade. Não a coragem de fazer o bem, mas o medo de praticar o mal. Banhada pelas fabulosas luzes de mercúrio, Alisia sentiu que fizera o certo, e ninguém e nem revista alguma precisava saber daquilo.

7 comentários:

Guilhotina Voadora disse...

Conto forte Capa, bem adulto e razoavelmente violento. Achei muito legal mesmo, mas algumas pessoas vão ficar chocadas.

Calliban disse...

"Alguma Pessoa", no singular

Unknown disse...

Realmente... eu estou chocado...

Mavericko disse...

quem fica chocada eh galinha!

HAHAHA otimo kra, me fez lembrar de dexter ^^

bandido bao eh bandido morto msm :)

Guilhotina Voadora disse...

Sinceramente. Eu como ser humano, se eu tivesse poderes, agiria da mesma forma que a Alisia, principalmente com estrupador. MAs eu não mataria o cara, eu o deixaria deformado e amputado pro resto da vida, da forma que nunca mais fizesse mal a nínguem.

Mavericko disse...

Eu n, eu mataria, pois um bandido deformado e amputado eh um potencial futuro vilão bodyless q vai contratar minions pra fazer o serviço dele : )

Arthur Malaspina disse...

Belo conto, muito bom mesmo, daria um ótimo gibi.